sexta-feira, 9 de julho de 2010

Liberdade é um barquinho de papel.

O texto A Viagem de um Barquinho, de Sylvia Ortoff é de 1975. Porque, nos dias atuais, encenar essa peça da forma como foi escrita, sem alterar uma vírgula? Textos contemporâneos de dramaturgia infanto-juvenil com qualidade não faltam. A resposta pode estar dentro de nós. Ética, companheirismo, questionamentos e respeito ao próximo são valores que parecem estar distantes de nosso dia a dia...tempos de culto a individualidade e a esperteza. A peça fala de uma infância que não existe mais, que vive somente na cabeça dos mais velhos. Um simples papel vira um barquinho, que vira um amigo, que ganha autonomia, que vira a Vida. Nossa Vida. Objetos e bugigangas antigas que entram e sai de cena, como vitrola, radio-cassete, ceroulas e patinete remetem ao passado, mas para as crianças são novidades, assim como é novidade Lavadeiras, Sapos, Pirilampos... quintais e varais. Bons tempos em que o questionamento era sobre o herói briguento das histórias em quadrinhos, ou a felicidade eterna presente nos finais dos contos de fada. Como seria o mundo se cada um de nós fosse o menino da peça, que em determinada hora, depois de muito procurar seu barquinho de papel pergunta: “Barquinho, será que você quer mesmo voltar conosco? De repente, comecei a pensar que estamos tirando a sua liberdade de ir e de voltar, de viajar por águas de oceano, de brincar com ondas lindas, todas estas coisas que você veio conhecer...” Como seria o mundo se todos tivessem uma amiga lavadeira, a nos ensinar que tudo na vida é transitório? Por traz de cada frase, de cada brincadeira aparentemente despreocupada do texto está o rico universo simbólico da autora Sylvia Ortoff: O rio é um destino e a liberdade um caminho. Na peça o menino encontra um Sapo, que um dia foi Rei, mas que agora está feliz da vida por poder andar de “bum bum ao vento”. Cruza com um Sol bem resolvido, que se recusa a ser dedo duro contando tudo o que vê lá de cima, cruza com cavalos coloridos, princesas, pirilampos e o personagem do Sonho que questiona: “Como alguém pode ser dono da liberdade do outro? Como é que você pode dizer que ama o seu barquinho e querer que ele seja só seu? Ele é das ondas...talvez...mas as ondas vão e vem.”. Conheci esse texto através da Élsie, há muito tempo atrás. De vez em quando surgia a idéia de encená-la, mas a oportunidade só apareceu agora. No fundo, intuitivamente, sabíamos o porquê dessa empatia, só revelada agora. Ele expressa um pouco o que procuramos com o Garatuja: que jovens e crianças tenham autonomia e respeito a diferença do outro. Esperamos encontrar um dia cada pessoa que por aqui passou e dizer: “Puxa, você cresceu!” e poder ouvir: “ Foi a liberdade do mar...muito sol...muito vento”. O texto, como todo bom texto infantil, tem múltiplas leituras. Não toca somente as crianças, toca principalmente os adultos, ou a criança que deveria morar em todo adulto. Sem essa criança somos incompletos, mutilados. É ela que nos mostra a transitoriedade da vida, que preenche a ausência de um ente querido, que nos consola da dor da perda, da separação, ensina que sempre é tempo de aprender e que nada é para sempre. “Neste mundo de astronautas, de foguetes pelo céu, sempre pode haver viagens de barquinho de papel!”.

Texto de Márcio Zago para o programa da peça. Acima um fotograma da animação A Viagem de um Barquinho, feita em Super-8, e que faz parte da peça.

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